[Photo by plau bleu 2012]
Quando damos as mãos, somos
um barco feito de oceano, a agitar-se sobre as ondas, mas ancorado ao
oceano pelo próprio oceano. Pode estar toda a espécie de tempo, o céu
pode estar limpo, verão e vozes de crianças, o céu pode segurar nuvens e
chumbo, nevoeiro ou madrugada, pode ser de noite, mas, sempre que damos
as mãos, transformamo-nos na mesma matéria do mundo. Se preferires uma
imagem da terra, somos árvores velhas, os ramos a crescerem muito
lentamente, a madeira viva, a seiva. Para as árvores, a terra faz todo o
sentido. De certeza que as árvores acreditam que são feitas de terra.
Por isto e por mais do que isto, tu estás aí e eu, aqui, também estou
aí. Existimos no mesmo sítio sem esforço. Aquilo que somos mistura-se.
Os nossos corpos só podem ser vistos pelos nossos olhos. Os outros olham
para os nossos corpos com a mesma falta de verdade com que os espelhos
nos reflectem. Tu és aquilo que sei sobre a ternura. Tu és tudo aquilo
que sei. Mesmo quando não estavas lá, mesmo quando eu não estava lá,
aprendíamos o suficiente para o instante em que nos encontrámos.
Aquilo que existe dentro de mim e dentro de ti, existe também à nossa
volta quando estamos juntos. E agora estamos sempre juntos. O meu rosto e
o teu rosto, fotografados imperfeitamente, são moldados pelas noites
metafóricas e pelas manhãs metafóricas. Talvez outras pessoas chamem
entendimento a essa certeza, mas eu e tu não sabemos se existem outras
pessoas no mundo. Eu e tu declarámos o fim de todas as fronteiras e
inseparámo-nos. Agora, somos uma única rocha, uma única montanha, somos
uma gota que cai eternamente do céu, somos um fruto, somos uma casa, um
mundo completo. Existem guerras dentro do nosso corpo, existem séculos e
dinastias, existe toda uma história que pode ser contada sob múltiplas
perspectivas, analisada e narrada em volumes de bibliotecas infinitas.
Existem expedições arqueológicas dentro do nosso corpo, procuram e
encontram restos de civilizações antigas, pirâmides de faraós, cidades
inteiras cobertas pela lava de vulcões extintos. Existem aviões que
levantam voo e aterram nos aeroportos interiores do nosso corpo,
populações que emigram, êxodos de multidões famintas. E existem momentos
despercebidos, uma criança que nasce, um velho que morre. Dentro de
nós, existe tudo aquilo que existe em simultâneo em todas as partes.
Questiono os gestos mais simples, escrever este texto, tentar dizer
aquilo que foge às palavras e que, no entanto, precisa delas para
existir com a forma de palavras. Mas eu questiono, pergunto-me, será que
são necessárias as palavras? Eu sei que entendes o que não sei dizer.
Repito: eu sei que entendes o que não sei dizer. Essa certeza é feita de
vento. Eu e tu somos esse vento. Não apenas um pedaço do vento dentro
do vento, somos o vento todo.
Escuta,
ouve.
Amor.
Amor.
José Luís Peixoto, in 'Abraço'
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