"A sua vida
parece-lhe a de uma outra pessoa. Talvez seja isso. Não poder
reconhecer-se por completo no que faz, diz, deseja. Uma crescente
discrepância. Uma diminuta, mas perceptível, perda de nitidez nos
contornos. Como se a sua verdadeira vida se tivesse despegado da vida
que leva e, com o tempo, a distância entre elas fosse aumentando e a
reconciliação se tornasse cada vez mais improvável. Uma pessoa não é
quem quer ser, não faz o que gostava mais do que tudo fazer, não dita a
vida que a leva consigo. Talvez seja isso. O que acontece desde sempre
quase sempre a qualquer um. Salvo nos momentos de paixão em que vivemos a
tremenda certeza de estarmos a ser quem somos. Não é preciso que seja
uma pessoa. A sua última paixão chama-se Cate Blanchet. Uma actriz de
cinema australiana. Uma actriz não é bem uma pessoa. Não é forçada a ser
sempre uma mesma pessoa. Muda de pessoa. Tudo lhe pode acontecer. Muito
diferente da habitual ansiedade de não saber se algo vai ou não
acontecer. A paixão é um engano em que nos queremos enganar mais do que
tudo. Uma partida pregada pela vida que depois nos reconduz ao lugar
quotidiano ao qual pertencemos e nos vai construindo e desfazendo. Dia a
dia, todos os dias. O castigo de ter querido ser mais do que se é. Do
que se pode. Ela pensa várias vezes em coisas deste tipo. Coisas que
apelida do tipo inútil. Que não parecem ajudar. Sem aprofundar muito.
Com receio de pensar demais nisso e ficar retida algures numa dúvida
cheia de perigos. Põe-se a brincar com o cão. Vai lavar a loiça. Sai
para a rua onde se cruzam caras e corpos sempre diferentes, embora nunca
demasiado diferentes, nascidos de uma fonte inesgotável."
Pedro Paixão
Pedro Paixão
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